sexta-feira, março 31, 2006

DEZ RÉIS DE ESPERANÇA

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão

domingo, março 19, 2006

O GUARDADOR DE REBANHOS

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Alberto Caeiro

sexta-feira, março 17, 2006

AUTO- RETRATO



Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.


Posted by Picasa Natália Correia

domingo, março 12, 2006

REENGENHARIA

Sou um profundo defensor da inovação, da criatividade e da mudança nas organizações mas nunca fui grande fã do conceito de reengenharia, que Michael Hammer e James Champy introduziram, no início dos anos 90.

Sempre fui muito mais pela mudança gradual de processos do que pela rotura rápida e pela reinvenção radical, que penso dever ser guardada para alguns casos (muito) drásticos. Penso até que a reengenharia, tão louvada por alguns consultores, foi responsável por muitas empresas caírem na armadilha de fazerem mudanças drásticas de coisas que, ao fim e ao cabo, não precisavam de alteração, apenas de simples melhorias.

Embora o conceito tenha sido esmagado, quase no seu início, pelo Downsizing e, posteriormente, pela atenção dada à Nova Economia, continuou a ter um importante grupo de seguidores e a actual crise parece querer fazê-lo renascer das cinzas. Daí o aparecimento do mais recente livro de Hammer The Agenda: What Every Business Must Do To Dominate The Decade, ao mesmo tempo que Champy lançou X-Engineering The Corporation, onde reclama a "reinvenção" da reengenharia no quadro do mundo digital de hoje.

Meus amigos. A reengenharia está de volta e, portanto, convém relembrar histórias antigas, antes que se voltem a cometer os mesmos erros.

Aqui vai uma muito conhecida, ao jeito de fábula, que, pensamos, pode servir para esclarecer algumas mentes menos atentas
.

Duas pulgas que viviam no pêlo de um cachorro em contínuo terror de serem trucidadas pela patorra do bicho que as procurava esmagar sempre que elas, para se alimentarem, sugavam o sangue do canídeo, comentavam uma para a outra:

- Sabes qual é o nosso problema? Nós não voamos, só sabemos saltar. Daí nossa hipótese de sobrevivência ser tão baixa. É por isso que existem muito mais moscas do que pulgas.

E então decidiram contratar, como consultora, uma mosca, que as levou a tirar o brevet de voo. Quando já voavam a primeira pulga disse para a segunda:

- Se calhar saber voar não é o suficiente, porque temos um tempo de reacção muito longo, demoramos muito tempo a levantar voo e a pata do cachorro é rápida. Temos de aprender a fazer como as abelhas, que sugam o néctar e, rapidamente, levantam voo.

Então contrataram o serviço de consultoria de uma abelha, que lhes ensinou a técnica de levantar voo rapidamente. Funcionou, mas não resolveu. A primeira pulga fazendo a análise da situação explicava:

- A nossa bolsa de armazenamento de sangue é muito pequena e por isso temos de pousar muitas vezes para sugar o sangue necessário. Escapar, a gente até escapa, mas não nos estamos a alimentar bem. Temos de resolver este problema.

E então contrataram um mosquito que lhes prestou uma consultoria para incrementar o tamanho dos seus abdomens.

O caso ficou resolvido mas por pouco tempo. Como tinham ficado maiores, o cachorro apercebia-se facilmente da sua chegada e espantava-as mesmo antes de elas pousarem. Foi então que encontraram uma pulguinha saltitante:

- Ena pá! Vocês estão enormes! Fizeram alguma operação plástica?

- Não, fizemos reengenharia. Agora somos pulgas adaptadas aos desafios do século XXI. Voamos, picamos e podemos armazenar mais alimento.

- E por que é que estão com essa cara de fome?

- Isso é temporário. Já estamos a fazer consultoria com um morcego, que nos está a ensinar a técnica do sonar. E tu como estás?

- Eu vou bem, obrigada. Forte e sadia.

Era verdade. A pulga estava viçosa e bem alimentada. Mas as pulgonas não queriam dar a pata a torcer:

- Mas não estás preocupada com o futuro? Não pensaste em fazer reengenharia?

- Pensei pois! Contratei uma lesma como consultora.

- Mas o que é que as lesmas têm a ver com as pulgas?

- Tudo. Eu tinha o mesmo problema que vocês as duas tinham. Mas, em vez de dizer para a lesma o que queria, deixei que ela avaliasse a situação e me desse a sua opinião. A lesma passou três dias, quietinha, a observar o cachorro e então deu-me a solução.

- E qual foi a solução?

- "Não mudes nada. Passa é a viver no cocuruto da cabeça do cachorro. É o único lugar que a pata dele não alcança".

quinta-feira, março 09, 2006

GLORIOSO



Sou velho e já passei por muitas dificuldades, mas a maioria delas nunca existiu

Mark Twain

Cartoon Rui Pimentel/Visão

quarta-feira, março 08, 2006

CALÇADA DE CARRICHE

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Em 8 de Março 1857, as operárias de uma fábrica têxtil de Nova Iorque entraram em greve e ocuparam as instalações, reivindicando a redução do seu horário de trabalho de 16 horas (pelas quais recebiam menos de um terço do salário dos homens) para 10 horas diárias. As grevistas foram fechadas na fábrica onde deflagrou um incêndio, no qual morreram queimadas cerca de 130 mulheres.

Em 8 de Março 2006, 149 anos depois, um pouco por todo o mundo constata-se, ainda, a existência de graves preconceitos e limitações aos legítimos direitos das mulheres.

Posted by Picasa Por quanto tempo mais?

domingo, março 05, 2006

O JANTAR DO BISPO

(...) O jantar estava a chegar ao fim. A conversa agora era geral e subira meio tom. Os criados davam muitas voltas à mesa.

Um pouco entontecido com a rapidez das palavras, o Bispo olhou a penumbra do tecto. Depois, baixou o olhar e viu em sua frente o pão e o vinho pousados sobre a mesa.

A seguir ao jantar, o Dono da Casa conduziu o Bispo e o Homem Importante para uma pequena sala, onde se sentaram os três e tomaram café.

O Homem Importante falou novamente na Igreja de Nossa Senhora da Esperança. O Bispo contou que a igreja tinha sido construída por um antepassado do Dono da Casa e expôs o problema do tecto. O Homem Importante ofereceu imediatamente cinquenta contos, e o Dono da Casa ofereceu os outros cinquenta contos. Depois o Dono da Casa expôs ao Bispo o problema do Padre de Varzim. O Homem Importante apoiou as razões do Dono da Casa. O Bispo concordou que a atitude do padre novo na questão do caseiro fora uma atitude imprudente. O Dono da Casa continuou a acusação e o Homem Importante continuou a argumentação. O Bispo prometeu que mudaria o pároco da aldeia para outro lugar.

O Dono da Casa entregou um cheque e o Homem Importante entregou outro cheque.

O Abade de Varzim tinha sido vendido por um tecto.

Ninguém falou em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes. Mas quando se levantaram os três e se dirigiram para junto dos outros convidados para a sala grande, o espírito do Bispo estava pesado de confusão. Ele era como um homem que, envolvido num negócio que não entende bem e convencido por um hábil advogado, compra o que não quer comprar e vende o que não quer vender.

E Deus no Céu teve dó daquele Bispo porque ele estava só e perdido e não sabia lutar contra os hábeis discursos dos donos do Mundo.

quarta-feira, março 01, 2006

FADIGA POLÍTICA (Excertos)

Tomaremos política como toda a actividade que implica lidar com homens, não apenas para lhes dar a instrução, ou a técnica, ou o apoio moral de que podem num momento necessitar, mas para obter que pelo seu trabalho colectivo se consiga atingir um determinado objectivo...

Existe, muito, porém, nos melhores dos políticos e está subjacente à maior parte das desistências e das tristezas, a ideia de que se vai para a vida pública para esculpir o mundo de uma determinada forma; o que sucedeu mais frequentemente é que se é levado à vida pública para encaminhar a humanidade num determinado sentido, para que se realize um sonho que se considerou como o melhor possível, como trazendo o máximo de felicidade para os homens se por acaso se pudesse pô-lo em prática. Ora a verdade é que muitas vezes o sonho não levou em conta as realidades e tudo se passou como se um grande pintor quisesse pintar azul com tinta vermelha...

Nenhum político deve esperar que lhe agradeçam ou sequer lhe reconheçam o que faz; no fim de contas era ele quem devia agradecer pela ocasião que lhe ofereceram os outros homens de pôr em jogo as suas qualidades e de eliminar, se puder, os seus defeitos...

Político não veio ao mundo para se satisfazer a si próprio: veio para se modelar, veio para se libertar do que lhe era inferior, e não representa num determinado campo senão o que devia ser feito por todos os homens, qualquer que seja a sua especialidade...

O grande homem que será verdadeiramente grande, se, a par do génio criador e a par do amor dos homens, tiver a amplidão de alma necessária para não ter como seu modelo e seu mestre nenhum outro grande homem, nenhuma figura meio sobrenatural, mas esta criatura paciente, persistente e acima de tudo humilde, e de muito bom humor, que é o jumento; o qual, além de tudo, pode ser lírico, como o Platero; que, por fim, com a, em potencial, força e dureza de seus cascos mantém em respeito quem em respeito tem de ser mantido.